Mulheres e escrita

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Location: São Paulo, Sudeste, Brazil

Professora de Língua Portuguesa, Francês e Literaturas de Língua Portuguesa, Mestre pela Unesp - Assis, doutoranda pela USP - Universidade de São Paulo. Estudo o português José Saramago e o angolano Pepetela, entre muitos outros autores. Tenho estudado a obra do brasileiro Márcio Sousa e de João Ubaldo Ribeiro, especialmente.

Saturday, January 06, 2007

L�ngua e Literatura

L�ngua e Literatura

Mulheres e escrita

Mulheres e escrita

Mulheres e escrita


A ESCRITA DAS MULHERES
Rosângela MANTOLVANI (PG- 2004 – Assis)
Os estudos acerca das questões de gênero, e neste, da questão do feminismo, no limiar do século XX, têm colocado em discussão alguns temas importantes, dentre os quais destacamos o da escrita das mulheres. Considerando a escrita como uma tecnologia entre as muitas outras produzidas pelas sociedades, enfatizamos que, desde o seu aparecimento como instrumento social de divulgação de idéias, passou a integrar o grupo dos aparatos que Teresa de Lauretis considera como tecnologias de gênero (LAURETIS, 1994:206-208) . Isto significa dizer que, na medida de seu surgimento e veiculação dentro de determinada sociedade e período cronológico, certas tecnologias funcionaram como instrumento de poder e divulgação de ideologias, sendo mantidas e controladas não somente por determinados grupos sociais dominantes, como também por determinados gêneros1. No caso da escrita, sabe-se que seu domínio esteve restrito durante muitas décadas, na sociedade Ocidental, ao grupo masculino e branco.
A escrita surge como instauradora de profundas distâncias entre grupos e classes, bem como entre homens e mulheres, ou seja, entre os que tiveram acesso a ela a partir de sua inserção em determinado meio social e os que dela e de suas vantagens ficaram alijados. Os excluídos do universo da escrita, assistiram a uma elite masculina e branca impor seus valores por meio desse aparato tecnológico que atribui poder.
Sabe-se que na Europa, antes do surgimento da escrita, as mulheres e os homens cultivavam tradições orais que se diferenciavam em alguns aspectos e, também, que muitos saberes pertenciam exclusivamente ao universo feminino.
A escrita se apresentou como instrumento de poder e dominação, acompanhada pela língua dos romanos, o latim, bem assim como seus valores, leis e padrões culturais androcêntricos, o que determinou uma defasagem entre a tradição e o saber oral. Ocorre que o saber oral pertencia a todos os membros da comunidade, mulheres e homens. A partir da inserção da escrita como instrumento social, criaram-se centros elitistas de cultura. Os saberes e tradições orais pertencentes exclusivamente ao universo feminino desapareceram, bem assim como línguas utilizadas exclusivamente pelas mulheres em cerimônias e religiões extáticas.
Nos territórios colonizados pelos brancos, como parte da África, por exemplo, a inserção da escrita não difere do modo como se apresentou na Europa. Sua propagação na sociedade pode ser vista sob dois prismas: 1) como uma tecnologia, oportunizando a aproximação das culturas ágrafas do uso da escrita e todas as possibilidades que se abrem a partir dela e, 2) como instrumento de poder e dominação que se impõe juntamente com uma língua estranha: a do colonizador.
A escrita foi usada, então, como forma de submeter as demais línguas e culturas existentes, bem como os valores expressos por meio desses falares, cujo resgate tornou-se, muitas vezes, inviabilizado, apesar dos esforços de pesquisadores, frades, jesuítas e estudiosos das tradições orais pré-existentes.
As tradições orais, veiculadas nas culturas pré-existentes à chegada dos brancos aos territórios colonizados e repassadas de geração em geração foram devoradas pelos colonizadores que impunham outros valores aos colonizados. A lex romana, a religião e a escrita estarão entre as tecnologias que instrumentalizariam o homem branco no domínio das novas terras.
Nas terras colonizadas, até meados do século XIX, a escrita, instrumento de poder político e social, produziria duas espécies de exclusão: 1) pela etnia, pois somente os filhos dos colonizadores iriam à Metrópole cursar Universidade; e 2) pelo gênero. Produto considerado raro, o domínio da escrita ficou, por muito tempo, restrito ao universo masculino. Ocorre que o acesso a essa tecnologia apresentou-se como privilégio de uma elite dominante. Embora muitas mulheres fizessem parte dessa elite, encontravam-se excluídas do universo masculino no que diz respeito à política e certas práticas sociais reservadas exclusivamente aos homens. Inclusa nessas práticas, a atividade da escrita.
De acordo com a pesquisa do suíço Héli Chatelain (1885) sabe-se que em algumas etnias africanas havia uma linguagem exclusivamente usada pelas mulheres embora algumas apresentassem marcas superficiais. Sua pesquisa, entretanto, teria considerado à parte essa produção de tradições literárias femininas nas sociedades africanas tradicionais, como as que haviam nas sociedades ágrafas da Europa.
Segundo Santilli, se já não existia uma escrita entre esses africanos, o colonizador português também não fez por dar-lhes logo o código grafado de sua linguagem, da língua que lhes levava de empréstimo.(SANTILLI, 1985, p.9)
Sobre essas linguagens, sabe-se que algumas foram criadas por motivos especiais, como na Europa, que surgiram por necessidade de resistência ao silêncio exigido na vida pública. Esse tipo de linguagem feminina e muitas vezes ritualizada, proveniente de religiões extáticas, foi relegada a pequenos grupos e, finalmente, sobreviveu entre as que mantinham conhecimentos esotéricos: as feiticeiras.
Entre as estudiosas da linguagem, não encontramos quem possa afirmar que existe uma linguagem exclusivamente feminina, mas comenta-se com freqüência a existência de uma escrita feminina, um posicionamento do feminismo, de escrever como mulher. Evidencia-se, sim, uma variação entre as produções escritas em função da sociedade, do código lingüístico, da ideologia, ou seja, valores ligados à cultura.
No que diz respeito aos valores culturais, parece bastante evidente que, mesmo a partir do momento em que algumas mulheres tiveram acesso à escrita, em suas formas mais eruditas como a linguagem poética, por exemplo, depararam-se com interditos sócio-culturais nas suas produções artísticas.
Algumas críticas e teóricas contemporâneas propõem uma linguagem exclusiva das mulheres, oral e escrita, como forma de conferir poder.
Com relação à crítica, pode-se dizer que há quatro vertentes que teorizam sobre a produção da escrita das mulheres, vistas como diferenciais e definidoras das qualidades da mulher escritora ou do texto da mulher:
1) a biológica: enfatiza a importância do corpo como fonte para a imaginação;
2) a lingüística: propõe que as mulheres tenham uma prática de escrita genuinamente feminina;
3) a psicanalítica: situa a diferença da escrita feminina na psiquê do autor;
4) a cultural: mais completa, incorpora idéias a respeito do corpo, da linguagem e da psiquê da mulher, mas as interpreta em relação aos contextos sociais nos quais ela ocorre.
Sobre a teoria biológica, Elaine Showalter2 nos afirmará que as idéias a respeito do corpo são fundamentais para a compreensão da concepção do feminino na sociedade, mas não pode haver qualquer expressão do corpo que não seja mediada pelas estruturas lingüísticas, sociais e literárias (SHOWALTER, 1994, p.34). A prática literária das mulheres, de acordo com Miller3, deve ser fundada no corpo de sua escrita e não na escrita de seu corpo (MILLER apud SHOWALTER, 1994, p. 35). O que constata Nancy Miller de forma apropriada é que as relações estabelecidas entre o corpo e a escrita, passam pelo filtro da sexualidade, das relações, da cultura, da tradição, ou seja dos valores sociais e a escrita deve ser vista a partir da forma como se articula.
A vertente que trata da teoria lingüística propõe, pela voz de Mary Jacobus4 que as mulheres tenham uma escrita que funcione dentro do discurso masculino, mas trabalhe de forma incessante para desconstrui-lo , que se proponha a ser a voz da resistência e que se lance a escrever o que não pode ser escrito (JACOBUS apud SHOWALTER, 1994, P. 37).
Ainda sobre a linguagem feminina, Shoshana Felman5 dirá que o desafio que a mulher enfrenta hoje é nada menos que o reinventar a linguagem. Esta linguagem tanto oral quanto escrita estaria situada em uma região selvagem, fora da estrutura falocêntrica especular, de forma que pudesse estabelecer um discurso cujo status não seria mais definido pelos valores falaciosos do pensamento masculino. (FELMAN apud SHOWALTER, 1994, p. 37)
Idealizar um espaço para a linguagem das mulheres pode ser visto como um gesto político portador de uma enorme força emocional. Apesar de apelar para a conjugação e unificação do potencial de criação acadêmica, no entanto, encontra-se sob o crivo das dificuldades, complementa Showalter, uma vez definido que a língua , a escritura, não são apenas instintivas, mas o produto de inúmeros fatores que envolvem além do gênero, a tradição, a memória, as tecnologias e o contexto. A ideologia exerce pressões sobre a concepção na escrita do sujeito e, particularmente, sobre o grupo das mulheres que escrevem, de acordo com a sociedade, a tradição, a ideologia a que se sujeitem.
Sobre a crítica que vê a escrita sob o olhar psicanalítco, Showalter6 dirá que :
(...) embora os modelos de crítica feminista baseados na psicanálise possam oferecer agora singulares e persuasivas leituras de textos individuais e realçar similaridades extraordinárias entre a escrita das mulheres em uma variedade de circunstâncias culturais, eles não podem explicar a mudança histórica, a diferença étnica, ou a força formadora dos fatores genéricos e econômicos. (...) é preciso evoluir para além da psicanálise, para um modelo de escrita feminina mais flexível e abrangente que a coloque no contexto máximo da cultura. (SHOWALTER, 1994, p.37)
Sobre a teoria cultural, Showalter a considera como mais adequada pois é capaz de absorver as teorias biológicas, lingüísticas, psicanalíticas e, ainda a social, que inclui a ideologia em que o sujeito feminino se encontra inserido. Comentando a respeito do termo silenciado, e referindo-se ao discurso das minorias, empregado por Ardener7 , conclui que toda linguagem é:
a linguagem da ordem dominante, e as mulheres, se falarem, devem falar através dela. [E que](...) as crenças das mulheres encontram expressão por meio do ritual e da arte, expressões que podem ser decifradas pelo etnógrafo, mulher ou homem, que quer fazer o esforço de perceber através dos filtros da estrutura dominante. (SHOWALTER apud BUARQUE DE HOLANDA, 1994, p.43-44)
O diagrama de Ardener apresenta zonas inacessíveis, tanto no universo masculino quanto no feminino. A esta região, denominada zona selvagem, no caso da que se mostra inacessível ao masculino, estaria o que a mulher apresenta de mais interessante: o segredo. A linguagem das mulheres estaria localizada nessa área. No entanto, seria impossível uma produção exclusivamente vinculada a essa zona selvagem, pois (...) não pode haver escrita ou crítica totalmente fora da estrutura dominante; (...) totalmente independente das pressões econômicas e políticas da sociedade dominada pelos homens (SHOWALTER, 1994, )
Vinculado tanto ao ideário da cultura ou classe que foi silenciada, quanto à cultura dominante, o discurso produzido pela escrita das mulheres é um discurso de duas vozes que personifica sempre as heranças social, literária e cultural tanto do silenciado quanto do dominante.
Observada sob o enfoque cultural, a linguagem e a escrita adquirem novos contornos a serem analisados, pois representam um mundo que o sujeito social trata de reformular em suas manifestações artísticas e culturais. Os objetos percebidos pelos sujeitos femininos estarão, assim, relacionados com seu universo e com a ideologia à qual se submetem.
Há autoras, que compreendendo a escrita como discurso e não como forma, admitem pontos de vista diferenciados.
Nelly Novaes Coelho, em artigo sobre o texto Novas Cartas Portuguesas, obra que valeu a prisão das "Três Marias", como ficaram conhecidas suas autoras portuguesas, Maria Isabel Barreno, Maria Isabel Horta e Maria Velho da Costa, trata de analisar as falas das autoras que se concretizam na escrita, observando que o problema é o da identidade, visto como fulcro que caracteriza a literatura feminina na segunda metade do século XX.
Sobre a leitura que Nelly Coelho faz de Augustina Bessa-Luís, no Prefácio desta a Tarde Demais, Mariana (CABRA, Filomena.) confirma a voz desta última:
Há uma escrita de mulheres. Confusa e embaraçada como elas, quando é uma escrita de mulheres (...) No mais das vezes, as mulheres escrevem de acordo com os modelos que obtiveram dos homens. (...) Agora começa a haver uma literatura feminina, uma forma de a mulher se interrogar; mas ainda só balbucia...(BESSA-LUÍS, 1985)
Confirmando as idéias da autora acima, Nelly Coelho diz que há uma escrita de mulheres, cuja preocupação é oferecer voz ao não-dito, revelando a condição do ser mulher. Para ela, o diferencial no texto feminino é:
(...)Uma escrita que já não objetiva representar ou denunciar determinada realidade, mas se quer (ou se pretende) fundadora/instauradora de uma realidade-outra, ainda amorfa, desconhecida da maioria; e cuja pedra-base seria a força cósmica (ou mítica?) do feminino, tal como se teria manifestado na origem dos tempos e que acabou sendo domada e deformada por milênios de sucessivas civilizações. (COELHO, 1985, p. )
As opiniões parecem divergir sobre a questão da escrita das mulheres, porém, só aparentemente. As aparentes divergências sobre as formas de pensar são, na verdade, parte da reflexão que as teóricas vêm desenvolvendo sobre a questão da escrita das mulheres, um campo ainda fértil para pesquisas, cujos resultados podem redundar inúmeras conclusões que não necessariamente se contradizem, mas se complementam.
Os sujeitos femininos representaram por meio da escrita, até meados do século XX, o universo que lhes é concedido, permitido. Ou, no máximo, especulam o universo ao qual não tiveram acesso.
É nos anos 60 que cresce o número de mulheres escritoras. Jovens universitárias, poetas e ficcionistas estréiam nessa época em diferentes países do mundo, pois é o momento em que novos escritores dedicam-se a experimentar formas, problematizar a história, as liberdades individuais e coletivas. Os trabalhos de Foucault, Lacan e outros, permitem uma nova visão da linguagem, ou seja, que os sujeitos se estruturam em função de uma linguagem, por meio de escolhas, que veiculam discursos, embora produtos de um sistema ideológico que os submete.
A escrita das mulheres, a partir desse momento, singulariza-se em função das diferenças culturais, dos discursos que veiculam, das vozes que revelam o interdito, o não-dito, os segredos. Discursos que se pretendem instauradores de um novo olhar sobre o feminino, que se constrói no espaço que o discurso masculino não revolveu, antes marginalizou.
ESCRITAS FEMININAS DE ANGOLA
É também nos anos sessenta do século XX, quando na Europa surgem muitos escritos femininos, que se iniciam e se instalam as revoluções, de forma organizada, nas terras africanas contra o imperialismo colonial. A revolução e o processo de independência permitem que surjam nos territórios coloniais outras manifestações de escritas que não aquelas provenientes do colonizador, impregnadas por seus valores culturais e ideológicos.
Rita Chaves, em seu estudo A formação do romance angolano (1999) nos diz que:
(...) Em relação ao universo cultural de Angola, onde a escrita chegou mais tarde, e levada por quem levava mais do que a cruz e alguns espelhos, a situação não difere [do restante dos países africanos colonizados]. Como em tantos outros lugares, as "estórias" contadas pelos mais velhos, conforme declara Manuel Rui8, cumpriam o papel de transmitir a sabedoria e humanizar o reino das relações que os outros elementos completavam. Trazida com os tiros, a escrita corresponde a uma espécie de ruptura que será convertida em nova forma de sentir e dizer. Transformando-se em maneira de presentificar experiências e organizar o real, a palavra vai sendo trabalhada no sentido de preencher o vazio entre o homem e o mundo, agora redimensionado, nessa nova etapa do chamado processo civilizatório. Violenta e irreversível a quebra se deu; mais tarde, caberia à literatura ali produzida a tarefa de rejuntar pedaços para a composição de uma outra ordem. (CHAVES, 1999, p. 20)
A revolução e o processo de independência favoreceriam, também, as escritas femininas, pois alguns dos movimentos guerrilheiros disseminavam como ideais não somente a idéia de liberdade política, mas as idéias de igualdade entre grupos e gêneros, ou pelo menos, é o que indicam algumas propostas dos movimentos de guerrilha, a exemplo do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) que trazia em seu estofo a OMA (Organização da Mulher Angolana), cuja primeira presidente foi a poetisa Deolinda Rodrigues, irmã de Agostinho Neto9. Em entrevista ao Jornal italiano Avanti, Agostinho Neto, líder do Mpla, em 1971, declara ao correspondente Basil Davidson que:
A Organização da Mulher Angolana desempenha um papel importante na luta do MPLA, não só no campo da emancipação da mulher, da assistência social, da organização do trabalho, como também na vasta campanha de alfabetização. (DOSSIERS ANGOLA, 1971, p. 23) (grifo nosso)
O texto permite observar que uma expressiva liberdade se assomava às mulheres, bem como a alfabetização que lhes acenava com a esperança de posse dessa tecnologia do mundo civilizado, então restrita a alguns grupos de homens angolanos.
A escrita em Angola, percorreu, para as mulheres, os mesmos trajetos que fez pelos grupos de homens e mulheres na Europa, apenas em momentos diferentes. A escrita se apresenta da mesma forma como se apresentou nas culturas ágrafas da Europa, ou seja, oferecida pelo conquistador como representação gráfica da língua dos dominantes.
As lutas pela Independência incluiriam em seus quadros mulheres como Deolinda Rodrigues, cuja militância política junto a grupos de libertação femininos merece ser destacada.
De acordo com Aldónio Gomes e Fernanda Cavacas, em seu Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Deolinda Rodrigues (1942) nasceu no Catete/ Icolo-e-Bengo/Angola, e apesar de ser filha de negros, irmã de Jofre Rocha e sobrinha de Agostinho Neto, conseguiu concluir seus estudos no Brasil e Estados Unidos. Engajou-se na luta pela libertação de Angola por volta dos anos 60, sendo presa por uma facção revolucionária contrária aos ideais de independência promovidos pelo MPLA. No cárcere, foi torturada pela FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola), vindo a falecer na prisão da UPA (União Popular Angolana) em 1968, aos vinte e seis anos de idade, em Kinkusu, na República do Zaire.
Sua poesia tem as marcas do que se chamou "poesia da revolta". Seus trabalhos encontram-se estampados em várias antologias: Poesia Angolana da Revolta (1975); Poesia de Angola (1976); Antologia Temática de Poesia Africana 2 (1979); e Caderno Angolano de Debate Literário 2 (1979) (GOMES; CAVACAS, 1998, p. 112).
Homenageada por outros poetas, o nome de Deolinda é uma bandeira de luta das mulheres em torno da emancipação e da luta por seus direitos no território angolano, expressa em versos como os de Alda do Espírito Santo, poetisa são-tomense, no livro É nosso o Solo Sagrado da Terra:
Amiga irmã
pequenina na estreiteza
dos meus horizontes
para ti o meu canto de saudade
Trilhando as arenas ardentes dum ideal
caminhaste em frente do futuro
para vencer a bruma
que abafava a terra
teu corpo caiu na arena
da morte
mas não foste vencida
Tuas irmãs de mãos cerradas
entoam o hino
que o exemplo da vida viva
representou tua existência.
De pé, Deolinda, eu te saúdo (...)
A independência da ex-colônia, em 1975, promoveria não só a emancipação política, mas uma série de outras liberdades antes desconhecidas. Uma delas é o ingresso de um maior número de mulheres tanto na vida política quanto na atividade literária nacional.
Inúmeros trabalhos surgiriam já, a partir do Movimento dos "Novos Intelectuais de Angola", iniciado pela geração de jovens escritores cujos trabalhos estariam ligados à idéia de emancipação política. Sobre esse primeiro momento de arregimentação de forças populares em torno da idéia de liberdade, Rita Chaves nos conta que:
A partir do final dos anos 40, o mundo começa a viver sob o impacto da guerra fria. (...) A ordem internacional demarcada pelas áreas de influência dos EUA e da União Soviética acusava a polarização entre a ideologia liberal (...) e o ideal socialista acenado com a promessa do bem-estar coletivo. Era, sem dúvida, uma época fervilhante, dinamizada pelos debates apaixonados envolvendo partidos políticos, agremiações culturais, entidades de classe e cidadãos comuns, preocupados com os rumos a serem tomados (...) Conscientes da urgência de mudanças, alguns setores da população aglutinavam-se em torno de idéias e projetos que pudessem canalizar energia para as transformações reivindicadas. Nesse espírito lançou-se o citadíssimo movimento dos "Novos Intelectuais de Angola", integrado por artistas que, na luta por uma estética calcada na valorização das marcas culturais angolanas, investiam no fortalecimento do sentimento nacional e criavam condições para a libertação do país. (...) No campo da literatura, era sim a poesia que assumia a frente e formulava propostas em cujo horizonte já se prenunciava o caráter eminentemente político das atividades que levariam à luta armada e à independência do país. (CHAVES, 1999, p.135)
Na esteira da emancipação política, a liberdade feminina faz seu rastro. A participação das mulheres nos movimentos intelectuais e literários, bem como aos políticos indica a abertura de novos horizontes e perspectivas no campo do feminismo.
Dentre as poetisas que surgem a partir dos ideais desse movimento, destacamos três nomes que se sobressaem no campo da poesia no território angolano.: Paula Tavares (Ana Paula Ribeiro Tavares) (1952- ), Doriana (Ana Francisca Silva Major) (1958- ), Maria Alexandre Dáskalos (1957- ) e Ana de Santana(1960- ). Representantes de uma geração, é após a independência do país que essas quatro vozes podem ser ouvidas tanto em seu próprio território quanto no exterior.
Ana Paula Ribeiro Tavares, angolana da Huíla, Lubango, inicia seus escritos muito cedo, porém só os publica a partir de 1985, quando surge a primeira edição de seu livro de poemas Ritos de Passagem, seguido pelo Caderno de Poesia, no mesmo ano. Licenciada em História, e atualmente cursando doutorado na Universidade de Lisboa, prestou serviços à Secretaria da Cultura de Angola, colaborando, ainda, com várias publicações periódicas angolanas e estrangeiras. É a mais velha em idade entre as poetisas angolanas da "Geração Independência". (GOMES; CAVACAS, 1997, p.287)
Sua produção artística sofreu influência de poetas angolanos como Davi Mestre, Arlindo Barbeitos e Rui Duarte de Carvalho e de brasileiros como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e, ainda como influências secundárias: Murilo Mendes, Clarice Lispector, Octávio Paz, Soyinka, que também foram suas referências em algum momento.
Em 1985 publica Ritos de Passagem pela União dos Escritores Angolanos, Luanda. Trata-se de um livro de poemas, dividido em três partes: 1) De cheiro macio ao tato, em que as temáticas giram em torno de elementos da fauna e da flora africanas. Na parte 2) Navegação circular, os poemas tratarão de temas ainda relacionados à fauna: a abelha, o flamingo, a vaca e o olhar do animal, o boi, elementos do cotidiano de quem nasceu no Lubango (Huíla), como ela e constantes do cenário angolano; e 3) Cerimônias de Passagem, em que procura descrever e representar, entre os fatos cotidianos, cenas de rituais africanos: os cerimoniais, os ciclos, as emoções, os desejos, a mulher, o profundo na simplicidade.
Em 1999, publica O Lago da Lua, pela Editorial Caminho, Lisboa. E, em 2001, surge o terceiro livro de poemas, Dizes-me coisas amargas como os frutos, pela mesma editora. Este, dividido em duas partes: 1) Boi, boi traz dezessete poemas, nos quais se observa uma relação entre a memória dos costumes dos antepassados e os sentimentos e comportamentos do presente, ou seja, um resgate da memória cultural. Na parte 2) Vaca fêmea, guia bem amada dos rebanhos, dá-se o agrupamento de dez poemas. E, também nesta parte do livro, os rituais e cerimônias próprios da cultura percorrem cada poema, enquanto os elementos ligados à terra articulam-se para construir imagens ligadas às sensações de um eu poético feminino, salvo exceções, entranhado em parte dos poemas.
As relações que se estabelecem entre as sensações e as imagens que percorrem o trabalho de Paula Tavares atestam seu caráter de originalidade. Não se trata apenas de descrever o exótico e inserir uma imagem do feminino que se construa como algo estranho a ser apreciado, mas de veicular as possibilidades do ser humano em terras que por vezes surgem como paraíso e, por outras como empecilho à sobrevivência.
Ana Francisca da Silva Major, a D'Oriana, ou Doriana, nasceu em Luanda, Angola, em 1958, e licenciou-se em Direito. Participou do grupo Archote, que se reunia em torno da revista com o mesmo nome. Publicou em Luanda, em 1988 seus poemas que se incluíam entre outros nomes em antologias como No Caminho Doloroso das Coisas. Antologia Panorâmica dos Jovens Poetas Angolanos. Suas atividades artísticas transitam entre a poesia, a música e, ainda, o teatro. (GOMES;CAVACAS, 1997, P. 117)
Maria Alexandre Dáskalos, filha de Alexandre Dáskalos, nasceu em 1957, em Angola. Segundo David Mestre, em seu artigo Novíssimos, Carta de Luanda, publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1993-10-19, a obra Jardim das Delícias (1991) estaria classificada como "nosso melhor cancioneiro", " tanto pelo tom helénico que a percorre como pela estratégica iniciática que a determina , encontra local cativo na mais escolhida vertente da lírica local" . Ana Mafalda Leite, professora brasileira, no artigo "Angola" que se encontra na coletânea The Postcolonial Literature of Lusophone Africa (P.Chabal et al.,p.163), diz que "The careful and concise crafting of detail evokes a hidden voice whispering poems as though they were secrets. At times Dáskalos' poetry displays the characteristics of the Japanese verse form of haiku of the rhythms of an oration". (id.ibid, p. 248)
Ana Paula de Jesus Faria Santana, ou Ana de Santana, nasceu em Luanda, capital de Angola. Formada em Economia, publicou em 1986 o livro de poemas Sabores, Odores & Sonhos, pela União dos Escritores Angolanos - Luanda, sendo considerada uma das mais importantes vozes líricas das últimas décadas. No dizer de Manuel Ferreira, em artigo intitulado "Em louvor da moderníssima poesia angolana", no Jornal de Luanda, fevereiro, 1989, há nos enunciados desse libro "o exorcismo da recusa ao vazio e deles emerge um certo incitamento a uma voz que soletra a certeza; a palavra como abertura para o amor, repercute o timbre do erotismo. E a sua voz é ainda carregada da inquietação, o espectro da guerra é uma espécie de subjacência num universo em que a massa telúrica, as ressonâncias culturais nacionais, irrigam, anunciam o tempo do sonho. (...) temos aqui uma linguagem pessoal, uma nova maneira de dizer o que já foi dito, e o que o homem terá sempre necessidade de dizer". (id.ibid, p. 43)
Quatro vozes de mulheres que se manifestam com a mesma força daquela que foi calada, a de Deolinda. Se a independência política propiciou a construção de uma identidade nacional, permitiu também a recuperação dos valores femininos, bem como a reorientação desses valores, por meio da tradição, porém com vistas ao futuro. Um futuro em que a participação feminina e a palavra das mulheres encontra eco do outro lado do Atlântico, nos países em desenvolvimento.
É possível concluir que essas escritas femininas viabilizam as vozes antes silenciadas, veiculando modos de perceber o mundo antes ocultos pelos segredos da tradição, ou restritos à oralidade que os supunha eternizados de geração em geração. Suas produções revelam os sentimentos então inacessíveis do caráter feminino, agora expostos para a compreensão de um espaço sócio-ideológico de acesso restrito ao mundo ocidental.
1 Entendemos aqui a palavra gênero não apenas no sentido sexual, mas como produto e processo de tecnologias sociais, ou seja, meios e instrumentos que habilitaram os grupos em determinadas sociedades. O gênero representa, então, um indivíduo por meio de uma classe
2 SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In BUARQUE DE HOLLANDA. H. (org.) Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro:Rocco, 1994
3 MILLER, Nancy. apud id. ibid., p. 35
4 JACOBUS, Mary. apud id. ibid., p. 37.
5 FELMAN, Shoshana. apud ( id.ibid.), p. 37.
6 id. ibid., p.43 – 44.
7 ARDENER, Edwin. apud (id. Ibid) , p. 47
8 Escritor angolano
9 Agostinho Neto, foi presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e primeiro presidente da República de Angola, após as lutas pela Independência Política do país.